Escrever sobre corpo/corporalizar palavras


por Lucas Valentim

Buscando minha maneira de lidar com a dramaturgia teatral, minha forma de se escrever para a cena, descubro que meu interesse está voltado para o texto que nasce do corpo dos atores, das pessoas que atuam, ou seja, das suas ações cênicas. É deles também, dos atores e de ninguém mais, o mérito, o êxito da cena, da performance teatral. Sem os atores o teatro não existe. Diria mais, sem o corpo dos atores não seria possível fazer teatro. E cada corpo possui sua própria dramaturgia: uma veia que salta, um sinal, uma tatuagem - são as marcas dos caminhos por onde este corpo passou. Sua história é narrada pela sua vivência, escrita em seu templo, em sua pele. Um corpo também é escrito e reescrito em relação com a sociedade em que vive. O corpo pode ser construído de acordo com moldes oriundos do meio social em que o ator vivencia sua vida cotidiana e também sua subjetividade. O espectador também assiste à cena a partir de suas vivências e modos de enxergar o mundo: a arte. E por que não dizer que o público também teria seu corpo em conexão direta com os atores a partir de suas paixões, sensações e subjetividade? Assim, o espectador ocuparia um lugar de fruição estética e não apenas um lugar passivo no processo teatral. 


Com o intuito de elucidar o que entendo como “corpo”, trago a definição de Linguagem Corporal de Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro: “O corpo do ator torna-se o corpo condutor que o espectador deseja, fantasia e se identifica (identificando-se com ele).” (PAVIS, 2008, p. 75). Para o autor, a linguagem corporal do ator em cena se transforma no corpo condutor da experiência corporal do próprio espectador. Sendo assim, entendo que o ator não é um objeto a ser analisado, observado, mas sim uma mola propulsora para que o espectador seja convidado a entrar em cena e participar do ambiente cênico teatral, do processo criativo a ser vivido e experimentado.

Como realizar então, em um processo inicial e solitário de pesquisa acadêmica, a construção de um alicerce – de um respaldo teórico – que se concentre em uma reflexão sobre o corpo como centro do material de trabalho e investigação? Busco, por isso, analisar obras que possuam conteúdos de interesse pessoal e que são cânones do teatro - textos teatrais que sirvam de base para uma futura experiência de “corporalização cênica”. O estudo de tais obras funcionaria como a criação de um discurso, pois busco trabalhar a partir de um determinado tema e nas possibilidades que ele suscita.

No âmbito nacional, escolho algumas obras de Nelson Rodrigues, autor brasileiro de grande prestígio no campo teatral. O teatro de Nelson Rodrigues bombardeou os ideais burgueses de estado e família na primeira metade do século XX. Trata-se de um teatro que dá vazão às paixões em nome de uma revolta contra a ordem estabelecida. Para tanto, busco analisar algumas obras do autor, comparando-as com obras de Sófocles, um dos principais autores teatrais da Grécia Clássica, na Atenas do século V a.C.. Compreendo que a tragédia grega visava domar e elaborar as paixões humanas em nome de um ideal político e humanitário que se formava na época da democracia grega. As paixões apresentadas no teatro sofocliano são nocivas à polis, e o ser humano pode domá-las; o inverso ocorre no teatro rodrigueano, que busca libertar as paixões e revelar características intrínsecas do ser humano.

Em um primeiro momento, foco minha pesquisa em duas obras: Édipo Rei, de Sófocles, e Álbum de Família, de Nelson Rodrigues. O conceito de hýbris, que para os gregos seria uma transgressão dos limites humanos, é analisado nas obras citadas. Também busco analisar o conceito de kátharsis utilizando a teorização de Junito Brandão para compreender a função dramática da tragédia: “Catarse, kátharsis, significa, na linguagem média grega de que se originou, purgação, purificação. Diz Aristóteles que a tragédia, pela compaixão e terror, provoca uma catarse própria a tais emoções.” (BRANDÃO, 1985, p. 14 ). No que concerne ao conceito aristotélico, a kátharsis seria o resultado do processo da interação entre a encenação trágica e o público. A tragédia provoca no espectador a catarse quando ele vê em cena a hýbris e o aniquilamento do herói. Ao se identificar com as personagens trágicas, o espectador experimenta as emoções do terror e da compaixão, e desta forma ele mesmo vivencia a catarse corporal de suas próprias paixões.

Sendo assim, deparo-me com uma questão: os personagens de Nelson Rodrigues possuem corpos transgressores de regras sociais - são marginalizados, cometem crimes e ações corporais que vão contra os ideais da sociedade. Os personagens de Sófocles também cometem crimes, porém seus corpos não são perversos. Eles não possuem a consciência de que seus atos transgridem a lei e a ordem estabelecida. Em Sófocles as falhas de caráter dos personagens são utilizadas para que eles aprendam como devem agir em sociedade. Os personagens do autor grego se submetem a um destino irrevogável, já os personagens do autor brasileiro tomam decisões marginais. Sendo assim, percebo dois tipos de recepção diferenciadas que as duas obras analisadas promoveram sobre os seus espectadores na época de suas montagens, ambas mobilizando funções catárticas distintas diante de públicos de culturas e épocas distintas.

Oportunamente buscarei também analisar outras obras, como Antígona, de Sófocles, e A Serpente, de Nelson Rodrigues, dando continuidade ao estudo da hýbris e da kátharsis, Pretendo ainda realizar estudos mais aprofundados sobre os textos de estudiosos como Albin Lesky e Junito de Souza Brandão sobre o teatro grego, assim como materiais sobre a vida e a obra de Nelson Rodrigues, como o livro O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, de Ruy Castro. Seguindo este roteiro, acredito que terei acesso a uma melhor compreensão sobre o material de pesquisa, de modo a clarear minhas metas como encenador e poder executar com exatidão um projeto de encenação. 

Pretendo, neste projeto de encenação, orientar atores em um processo cênico que vise não à dramatização das obras analisadas, mas à construção de um material cênico oriundo dos resultados da minha pesquisa, delineando assim uma experiência teatral sensorial e estética. 

Como busco um ideal de construção cênica que não se limite simplesmente a utilizar os atores como “intérpretes”, mas sim como “atuantes”, procuro entrar em contato com textos de artistas que quebraram barreiras e mudaram a forma de se fazer e de se pensar o teatro durante o século XX, como Jerzy Grotowski e Antonin Artaud. Esses dois nomes, e muitos outros, estão presentes no livro ‘Teatro Pós-Dramático”, conceito criado pelo crítico alemão Hans Thies Lehmann. O autor utiliza esse conceito para denominar formas teatrais que utilizam elementos de outros campos das artes e fazem um teatro que não se limita a simplesmente contar uma história, mas a suscitar a criação de uma variedade de significados no imaginário do espectador, trazendo novos paradigmas para a cena teatral.

Para que eu também possa orientar os atores nesse processo de uma maneira mais palatável, tenho também me colocado de forma atuante, participando de processos como a residência artística El Cuerpo de la Organicidad, com Fernando Montes, no Teatro Varasanta, na Colômbia, e o Workshop A Dança das Intenções, com a atriz Roberta Carreri do grupo Odin Teatret.

Esse seria o ideal que venho buscando tanto em meu processo artístico quanto na realização de minha pesquisa acadêmica: estudar e buscar a construção da minha criação teatral a partir do corpo. Seria então o meu intuito produzir uma dialética entre escrever sobre e a partir do corpo, assim como corporalizar palavras em cena, ou sensibilizar os atores, conduzindo-os em direção a um processo corporal cênico que entre em conexão com os espectadores, que neste caso desempenhariam o papel de fruidores da obra de arte em questão. Na minha criação procuro romper com o papel moralizador que o teatro, desde Sófocles, propõe. A lógica que procuro introduzir é a do desregramento, do corpo livre, tanto do artista que executa as ações cênicas quanto do público, como fruidor da construção cênica.

Lucas Valentim cursa Artes Cênicas e, no PET, possui a pesquisa “O Corpo Como Propulsor da Hýbris e da Kátharsis em Sófocles e em Nelson Rodrigues”, orientado pela Professora Isabela Fernandes.

Obras de referência:
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1993.
ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego:Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1985.
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico: a Vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1992.
FERNANDES, Isabela. A Vida, a Morte e as Paixões no Mundo Antigo. Rio de Janeiro: Editora Cassará, 2012.
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Tradução: Aldomar Conrado. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
LEHMANN, Hans-Ties. Teatro Pós-Dramático. Tradução: Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1990.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2008.
RODRIGUES, Nelson. Álbum de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
________________. Teatro Completo: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.